Fotografia de Leonor Pedro

Não há nenhuma canção que diga tudo sobre mim

mas leio letras,

talvez haja uma que diga o que é viver assim.

Não há nenhum poema que diga tudo sobre mim,

mas guardo versos

cheios do mistério que um dia me encontrou aqui.

Às vezes, há um poema que podia falar por mim.

Agarro e engulo para guardar e gritar que decidiste ficar.

São estas palavras que agarro e engulo que quero agora gritar-vos aqui. Há muitos que as gritam incomparavelmente melhor do que eu, mas deixo-vos com o meu grito.

Por falar em dizer melhor do que eu, visitem o site jogosflorais.com. Tem excelência académica e bom gosto. Aqui é só consolo.

Poesias Inéditas (1919-1930). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990). - 92.

O amor, quando se revela,

Não se sabe revelar.

Sabe bem olhar p'ra ela,

Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente

Não sabe o que há-de dizer.

Fala: parece que mente...

Cala: parece esquecer...

Ah, mas se ela adivinhasse,

Se pudesse ouvir o olhar,

E se um olhar lhe bastasse

P'ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;

Quem quer dizer quanto sente

Fica sem alma nem fala,

Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe

O que não lhe ouso contar,

Já não terei que falar-lhe

Porque lhe estou a falar...

Descobri este poema pela versão musicada de Salvador Sobral. Podem ouvi-la aqui.

Este poema consola-me, porque parece falar sobre o modo como a arte faz o trabalho difícil de revelar o que não conseguimos revelar. Quando o espanto por alguém cresce, e se torna amor, a certa altura explode, mas é uma explosão silenciosa, como naqueles sonhos em que se quer gritar e não se consegue.

E se não fosse preciso falar?

E se “isto”, este poema, a arte, for uma maneira de falar sem precisar de falar?

Real

Nos últimos 3 anos, tenho estado muito atenta ao trabalho de uma cantora-compositora da minha idade, a Lizzy McAlpine. Impressionou-me a simplicidade e ousadia com que se atrevia a compor e a partilhar com o mundo as suas canções. Escrevia letras despretensiosas com que me podia identificar. Tinha expressões quotidianas nas letras, como “kitchen utensils”, que talvez não associássemos a poesia. Gosto disso. Em 2018, escrevi a minha primeira música, que não cheguei a acabar, mas foi na pandemia, inspirada pela Lizzy, que comecei a compor mais. Ajuda-me a pensar. E fazer harmonias com vozes umas por cima das outras é uma experiência muito próxima do consolo.

Letra:

I’m scared good things happen when I’m not there

You told me you felt it too.

In that moment, I restarted the breath I didn’t know I was holding.

You’re more real than this very glass

and I miss you all the time,

because I know what it’s like when you’re here,

and I know what it’s like when you’re not.

Friends make me unafraid of my fear

now I can humanly stay.

Two seconds later it’s already hard again

except now you’ll never leave.

Esta música é sobre o medo de perder o que acontece quando não estou presente, e o descanso de saber que não sou a única que sente isso. Também é sobre perceber que as coisas mais reais, como o consolo, podem ser difíceis de ver, mais são fáceis de reconhecer.

As gravações são caseiras e as músicas ainda em gestação.

Houvesse um sinal a conduzir-nos

E unicamente ao movimento de crescer nos guiasse. Termos das árvores

A incomparável paciência de procurar o alto

A verde bondade de permanecer

E orientar os pássaros

Daniel Faria, em Explicação das Árvores e de Outros Animais, Poesia, Assírio e Alvim

Gosto desta ideia de que permanecer no mesmo lugar possa orientar alguém. As árvores procuram o alto, estendem-se à procura do sol. E servem de guia aos pássaros. Tornam-se num lugar que os orienta

Por outras palavras, estar em todo o lado não orienta ninguém.

Há algum tempo, comecei a fazer uma playlist com este título muito amplo. Até agora, tem 8 horas e 27 minutos. Muitos me perguntam o que encontro nestas letras. Às vezes, é só mesmo um pormenor, “alguma coisa”, que, como o consolo, é difícil de definir.

Link para a playlist

Oseias 11 musicado

Uma amiga minha vai entrar num mosteiro. Talvez a convide um dia para nos falar do consolo. Num testemunho que deu na semana passada, falou em Oseias 11, e fui investigar. Depois de ler o texto algumas vezes, tentei musicá-lo. O Duarte Rosado SJ musicou brilhantemente Isaías. Vão ouvir. Impressionou-me neste álbum dele o modo como se manteve fiel ao texto bíblico quase sem fazer alterações para servir a música.

Foi isso que tentei fazer aqui ao lado, quase como que a tentar dominar o texto com a música, mas foi ele que me dominou a mim. Ficou o meu presente para esta amiga.